terça-feira, 15 de outubro de 2024

Um dia futuro


Por Mirinaldo

São 7h35. Estou na sala. Sala de aula. Já passei pelo corredor, pela sala dos professores e agora estou na sala... de aula. Começo a aula. Ligo o data show. Ligo cabos, computador, procuro o conteúdo (hoje é chamado de objeto de conhecimento). Fiquei sabendo que um professor faltou, está doente. Muito doente. Doente dos anos carregados pelo árduo pesar das suas lentes. Faltou. Sugestão: reunir as duas turmas. Vamos lá. Duas turmas lembram o dobro. O dobro são muitos alunos. Sala lotada. Dou-lhes um bom-dia, e saio entre eles para organizar as filas para acomodar os outros colegas que vêm da outra sala onde não houve aula porque o professor está doen... (Ops! Já falei isso – são os anos, meus vinte e oito anos de magistério que me roubam, aos poucos, a memória, um pouco menos dos anos do professor que está... doente). A aula segue. Assunto principal: o futuro dos alunos. Sim, quero dizer o Enem deste ano. Eu tenho que pensar e agir com eles. Eles não conseguem sozinhos, por isso eu sou o seu professor. A aula é sobre como ingressar na UFPA, universidade pública, rainha do Norte. Eu defendo as públicas. E estou diante de quem eu imagino um dia estar lá. Saí de casa e meus filhos ficaram dormindo (hoje não houve aula para eles). Neste exato momento, aqui nesta sala, nem sei se já acordaram. Eles também têm futuro. Mas agora eu tenho o dever moral de não falar deles, mas focar o futuro dos filhos dos outros. Nem sei quantos pais tratam de futuro em casa. Então cada minuto conta para eu abordar sobre como posso orientar meus alunos a terem uma vida que os torne bons cidadãos, que eles prosperem profissionalmente. Eu sei que a universidade é a porta de entrada para esse bom futuro. Não apoio o ensino técnico. Não tenho nada contra, mas também quase nada a favor. Quero meus alunos na faculdade (este ano foram quarenta e três. Quero o dobro, o triplo!). Dá uma vontade de olhar o celular e procurar saber se meus meninos, razão da minha vida, já acordaram. Mas o futuro não espera. Os minutos passam e eu não posso deixar os alunos passarem sem que cuidem bem de suas vidas. E a vida é agora. A aula continua com explicações sobre o futuro de cada um. Impera um silêncio. Nem contei quantos, mas acredito que a sala esteja com mais de cinquenta almas. Não é que aqui seja o céu, pois estou em uma escola que não é uma escola. Mas, ao mesmo tempo, deve ser considerada como uma, dadas às razões da própria natureza do ensino, porque, se for depender da natureza dos políticos da minha escola, isso aqui é um lugar esquecido, quente, mais próximo do... Escola é realmente um lugar político. Que pena. Não deveria, pois se fosse um lugar de educação prima, una a trina, seria encantadora. Mas não vou reclamar, pois a escola é também igual a uma casa de família: um quer o peixe frito, outro quer cozido. No fim, todos comem peixe. Aliás, lembrei-me da possibilidade de meus filhos terem já acordado (um não gosta de peixe). E continuo a falar dos cursos e das modalidades oferecidas para nossa abandonada região xinguara e uma delas é licenciatura. Quando explico que licenciatura é para ser professor e que a maioria dos cursos são dessa área, tristeza geral. Nenhum olho brilha. É o único curso que faz o aluno ficar aqui com sua família, casar com sua paixão adolescente, jogar bola, pescar um pouco, passear pelas ruas ouvindo as canções dos bares e ter lindos filhos. Filhos! Devem ter acordado! Mas há o grave problema: ser professor. Após essa má notícia, ouço uns sussurros de que é melhor procurar uma faculdade na cidade próxima daqui. Não me lembro bem do nome dela, mas acho que tem ouro ou algo dourado, enfim, tem mais letras do que a sigla “UFPA”. E fim de papo. Só que sei que agora tenho que sair da sala porque um aluno fez questão de me lembrar (eles acham sempre que eu sou esquecido) que já são nove horas (e eu nunca tinha ouvido esse aluno falar antes). Olho o meu relógio: oito e cinquenta e nove. Como eu sou insuportável em um minuto. Já fora da escola, lembro-me de verificar o contracheque do mês. Nada de novo. Aliás, só a lembrança da fala de algum outro professor que alardou que novos cortes vêm aí. Acho que é por isso que nenhum olho brilhou hoje mais cedo, porque ser professor é uma escolha bastante difícil de se fazer, fácil de sair dela e impossível esquecê-la. Agora vou para casa ver meus amores. O que guardarei deste dia? Vou me lembrar da mão de um aluno que esticou seu braço na minha direção enquanto eu arrumava a fila sobre a aula do futuro, mão fria, eu lembro, e me disse timidamente em voz bem baixinha: “Professor, feliz Dia do Professor”.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Como nasceu Vitória



Por Mirinaldo 

E do amor do Xingu com a jovem Ponta da Serra, nasceu uma filha. Deram-lhe o nome de Vitória. Tal graça foi dada pois os seus pais tiveram que lutar contra a vontade da Cobra-Grande, que era contra a união dos dois. A severa rastejante preferia que a Serra se casasse com Porto de Moz, tanto que deixou até hoje a  jovem sob o domínio daquela cidade e, para isso, a bruxa das águas dorme eternamente no fundo do grande rio, vigiando-o para que nunca mais possa se encontrar com  a doce menina. Mas o igarapé do Gelo entrou na história e sugeriu os encontros secretos do Xingu com a Ponta da Serra. E o rapaz aceitou: estendeu um braço por entre a mata virgem, rasgando-a por dentro. Chamou-o Tucuruí, o rio escondido, o rio secreto, o cupido do amor desses dois seres. Enquanto a cobra dorme, vivem os eternos amantes a procriar seus inúmeros filhos. E que ninguém a acorde dali. Houve um tempo em que o rio tremeu e, por pouco, a fera não acordou. Graças à Baía de Souzel, o plano dos amantes não deu errado. Ela agitou-se severamente e exigiu do seu esposo, Senador José Porfírio, que tomasse a Praia do Meio de volta e deixasse o Vitsol por conta do rio secreto, ou a cobra acordaria e daria fim aos encontros à surdina dos dois apaixonados. Por isso o evento de verão saiu do Xingu e veio para o alcoviteiro Tucuruí, alojado na casa de sua amante, a Prainha. Mas voltemos ao momento anterior a tudo isso. Muito antes. Depois que a Cobra-Grande adormeceu, Ponta da Serra e Xingu trocaram o nome da filha para Vitória do Xingu. E fizeram isso porque um dia a grande cobra acordará e irá procurar a menina, fruto do amor proibido. Mas vai procurá-la pelo nome Vitória e esperamos que nunca ela entenda o plano e poupe nossa jovem da fúria dessa serpente de olhos de fogo. Mas o que fez a grande peçonhenta dormir? A Praia do Meio. A Praia desejou descobrir o que ocorria com o seu amor não correspondido, o Xingu. Ela veio com a intenção de devorar o Tucuruí, fechá-lo para sempre e manter o seu amante idealizado sendo sugado pelas suas areias e nunca mais ser amado pela Vitória do Xingu. Cobra-Grande entendeu que a grande areia era a supernoite eterna que a estava chamando para o sono secular. E tem dormido até hoje. A Praia do Meio não conseguiu adentrar para sufocar o Tucuruí, porque o Senador a chamou de volta. Mas a Praia rebelou-se e não voltou. E quanto à jovem Vitória do Xingu? (Vitória, para os íntimos). Vive protegida pelo Tucuruí, pelo igarapé do Gelo enquanto vê sua mãe, Ponta da Serra, levar o Sol todos os dias. Hoje é uma jovem de 29 anos. Já tem vários filhos e netos. Alguns ainda moram com ela. Outros aguardam o fim dessa história em algum lugar depois do Sol. Ah, já ia esquecendo: está grávida de novo! E isso acontece toda vez que a Praia do Meio seca, libera as águas do folgado Xingu e este vem se deitar com a princesinha.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

CIDADÃO VERDE




Cajueiro da Pagoa
A menina passa por ele. O menino passa por ele. A história também passa por ele. E ele está lá, vendo todas as histórias passarem, todas as carreatas passarem, todas as bandas, todos os desfiles. Ele não fala nada. Fica imóvel, não intacto. Por esses dias mesmo, coitado, sofreu uma queda. Queda não. Ah, sei lá o nome! Ele se machucou. Ou o machucaram. Tanto faz. Já está feito mesmo. Mas a pompa, a elegância, o seu gigantismo, a sua majestade, o seu folhear, o seu balançar, tudo nele é formosura. E que frutos! Que delícia!
Desde meu tempo de eu menino que o vejo. Não sei quando ele cresceu. Parece até que já nasceu gigante, que já nasceu frondoso, que já nasceu pronto.
A rua onde ele fica, a avenida onde ele fica mostraram-lhe e ainda lhe mostram que o tempo continua nos mudando. Que o estamos, inclusive, abandonando, que o estamos trocando pelos prazeres modernos, pelo Facebook, pelo Instagram, pelo Whatsapp. Que loucura a nossa. Que troca ridícula, trocar sombras e frutos doces por objetos com baterias. Aliás, essas baterias podem danificá-lo, comer suas raízes, cegá-lo.
Mais adiante, outra besteira: som alto demais, buzinas escandalosas, motos e carros se entrecortando, fumaças saindo pelos bocas dos veículos, homens matando outros homens com seus pneus, com suas máquinas, com seus brinquedos de se exibir. Nossa, quanta confusão. E ele lá, ainda tendo que suportar isso tudo.
Isso tudo não, ainda tem mais. Carros de propaganda, caminhões estrangeiros, carga e descarga de produtos... cheiro de carne logo ali! Um casal discutindo mais adiante, outro casal vai se beijar mais acolá (Epa! Tem criança passando, desfaz o beijo!), tem um camelô logo por ali, alguém deixou uma sacola aqui... e o cachorro... nossa, gente, o cachorro. Nem vou dizer o que ele fez ao pé do meu amigo! O odor mudou.
E não para, agora é final de semana, há uma cachacinha rodando num copo de mão em mão, uma música de Reginaldo Rossi. Passo e vejo um casal dançando, volto e os vejo brigando, saio e já estão se amando de novo. Chove e só um senhor sem nome, sem endereço, fica deitado. À noite, nossa! Beijos e mais beijos. E ele finge que não vê, afinal, a mulher pode ser casada, é melhor ele não falar. E dali saiu um menino, já faz nove meses. Bom, dele eu sei que não é fruto. Ufa!
E vem chuva, sol, vento, a coleta do lixo (quanto lixo!) que também leva a terra, terra com lixo: cigarro, garrafas vazias, folhas mortas, amarelas; vem um banco, o banco quebra, vem uma caixa, a caixa quebra, e passa a menina e passa o menino e é segunda-feira, e é terça-feira e ele... lá.
Passa o ônibus, passa o bloco. Aliás, ele guardou muitos blocos, ficou com eles na concentração. E passa o carnaval todo, com muitos ao pé dele, parece até um mestre-sala. E passa a menina faceira, sambando pelo meio-fio e fazendo de pouco daqueles cabelos verdes que ele tem. Passa também sua santa, a Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos, com os cristãos, é claro. Ele fica solene, já não é mais o assanhadinho daquela terça-feira de folia. Agora se curva, se benze e ora, e pede mais raiz, mais terra, mais água, mais filhos seus, afinal é sozinho para aguentar tanta história. E paga sua promessa, que não sei e nunca saberei qual foi.
E agora dança, pula fogueira, se faz de compadre de todo mundo; agora é xadrez, é São João. Agora estão ali as quadrilhas, as daqui e as de fora, e ele vê o espetáculo e não paga ingresso. Vê o futebol, vê as bolas. Ajuda aquele menino a recuperar a bola que saiu errada. Vê a cultura. É patriota, desfila em 7 de setembro, apoia Zumbi em novembro e dá presente ao menino de nosso Deus.
Vê de tudo, vê o atropelamento, vê o carro novo que chegou, o homem bom que saiu e o mau que foi perseguir outros homens. Vê a lama, o carro atolado, o comércio cheio e vazio, o comércio crescer e quebrar, a menina crescer, o crente orar, o velório seguir, vê o novo e o velho trocarem de mundo, vê o político passar para o poder, vê o poder passar para o político, vê o povo sem poder.
E só vê. Porque ver é o seu fazer. Dar a sombra ao fraco é o seu destino. E segue sendo o coração da cidade. E segue sendo o verde esplêndido, e segue sendo o alívio daquele vendedor ambulante logo ali, e segue sendo a esquina que alivia as crianças do malvado calor, e segue sendo a estátua verde, porque sempre soube manter-se na altivez, como um homem forte, um guerreiro destemido. Mas ele sabe que não é homem, é somente algo que ainda muito verá, que sempre terá a certeza de que é o filho da Pagoa, o menino das sombras que sempre chamaremos de nosso cajueiro.

Mirinaldo, 18 de fevereiro de 2014. Especialmente para o lançamento da OLP 2014, na Escola Aliança para o Progresso.

O OUTRO LADO DA LUZ


 
Por Mirinaldo
 
Em todo lugar da Terra pode haver luz. O Sol nos brinda com ela e nós a produzimos nas lanternas, no fogo, nas velas nas telas. Nossos olhos se enchem de luz. Por eles ela nos atravessa e converte as formas que constroem, para nós, a nossa inteligência. A luz serve a todos, até aos que fazem maldade. Ela pode estar na lanterna de um ladrão ou no foco de um médico em uma consulta. Luz é luz. 
Deus-Homem já disse uma vez: “O Sol brilha para todos”. Então, estamos sob a sua luz. Como a usamos é como decidimos viver.
Porém, há um ponto tão escuro em nós onde a luz não se abriga. Nesse ponto só há sons. Pulsar. Latidos. Vibrações. É o ponto do coração. A luz do mundo não o avista. Abstém-se de molestá-lo. Deixa-o só. Apenas um mal pode permitir que a luz o veja: a doença que leva à cirurgia. Saudável, um coração não se mostra. Daí vira metáfora: terra, amor, paixão. E recebe títulos e prêmios pelo que não é: não é terra, não ama, não se apaixona. É um símbolo. Um símbolo sem... luz.
Daí a luz, inconformada com tal restrição, infringe os sentidos literais e a ciência e recria-se em uma forma única: SENTIR. O sentir se camufla e afeta todos os seres por dentro. Ilumina-os nas áreas onde a luz do mundo não chega. O sentir clareia o coração e é o único capaz de vê-lo sempre e sempre. Ela se apaga quando a luz do mundo se esvai da natureza humana. Fora isso, o sentir é luz sem ciência, pois não precisa dela.
É por esse lado da luz que eu me mostro e te vejo. Mas só se permite que tal ato se efetive quando alguém sabe que eu estou no mundo, porque o que eu sou só se conhece pelo lado oculto da luz. A minha luz. A tua luz. E somente uma luz perpassa pela minha luz e pela tua luz: a divindade. É no entrecruzamento delas que se cria o amor verdadeiro. Mas amor não tem a luz do mundo, nem daqui ele é, ele é o equilíbrio de todas as luzes. Por isso, explica-se Jesus. Por ele, uma luz vive na outra. Por ele, sabe-se o que é Natal. 
Se quisermos ver quem cada um é, é preciso que consigamos atravessar a luz do Sol, a luz dos homens e chegar à luz divina e dela retornar ao Sol. 
Se conseguirmos, isso é Natal, do contrário, são só árvores piscando... piscando... piscando...

Desocultemos nossas luzes entre nós.

A SINUOSIDADE DA SERPENTE





E rola pelo chão a maldita. Serpenteia a cauda e estremece as presas. Cabeça quieta, veneno agitado. Língua tinindo pelo sangue de um fraco. Aquieta-se de novo. Era só um vil rato a passar, mas ia ao longe. Não valia a ela o sacrifício de rastejar. E descansa.
Agora é mansa e fria. Parece sem ofensa e sem perigo. Reluz o couro ao reflexo do dia. Reluz o couro ao reflexo da lua. E ali, queda. E ali, em seu habitat, em seu mundo de serpente, trança-se. Parece não mais ofender a nada da natureza que ela só vê de baixo para cima. Vem desde os tempos de Eva e de Adão. Foi a infeliz criatura testemunha do pecado original. Foi a ambiciosa detentora da árvore da ciência. E agora...
Agora não conhece mais a ciência. Mas a ciência deu-lhe a resposta: teu veneno, tua má sorte. Teu veneno, fim do teu projeto de morte. E ali queda. E ali, retorcida, de corpo para o próprio corpo, de cabeça para a cauda, fica a serpente e esquentar o chão. A esquentar-se. A digerir.
Mas no seu entorno, nada é seguro. Tudo pode ser fulminante. Tudo pode arquejar. Tudo pode resvalar. Nenhum tropeço é permitido. Tudo é sob os preceitos serpentinos da majestosa figura de pose ingênua. Nenhum lance lhe é alheio. Nenhum movimento pode lhe ser ausente.
E ali, na forma sinuosa e de serpente, na forma sem languidez, ela completa o lance do instinto sério, frio e agudo. Dá o bote!
Foi o rato que voltou.
Mirinaldo, 3 de abril de 2013.