Mais uma festividade
da padroeira termina e as polêmicas em torno das garrafas continuam. Acusações,
ofensas e muitas baixarias saíram como flechas incendiárias em direção ao
pároco de Vitória do Xingu. Argumentos levantados de um lado e centenas de falácias
de outro criaram uma arena em que aparece um copo de cerveja e a imagem da
padroeira local. Ninguém saiu em defesa da Igreja (embora, paradoxalmente,
todos se digam católicos). Mas baixos calões e ofensas morais ficaram à baila.
Renderam tanto quanto o lucro do “líquido do Capeta”, como diz um radialista da
terra. O que foi tônico foi dizer que o padre está acabando com a tradição
religiosa. Alguns se propuseram até a ensinar ao padre o que é evangelizar
(quase lhe ensinaram a rezar a missa também).
Mas, afinal, qual o
grande “problema” mesmo?
Antes de mais nada,
uma coisa é certa: a Festa de Maio não acabou. É bem verdade que enfrenta os
problemas de readaptação a novos comportamentos, coisa que ocorreu nas outras
paróquias do Xingu, mas aos poucos estão se acomodando no seu devido lugar.
O que ocorre em
Vitória é semelhante à tradicional relação “compra e venda”, “freguês e
comerciante”. Enfim, alguém faz, outros pagam e querem ver e aproveitar. Mas
assistindo. Aquele tal do engajamento cristão é alheio à prática católica,
tanto aqui como na maioria do mundo. Então, se não há engajamento, não há
compromisso, nenhuma espécie de pertencimento, e, consequentemente, o resultado
será a desinformação, o estranhamento da mudança de uma coisa que nem mesmo as
pessoas sabiam por que existia. Daí, confusão total. E a culpa? A culpa precisa
ser lançada sobre alguém. Algum “bode expiatório” (já que não procuramos
ovelhas) precisa ser o escolhido. E como temos aquela velha concepção deixada
pela cultura colonial de que alguém manda e outros obedecem, então há a
distorcida concepção de que o padre deve pagar pelo “erro”, pois se pensa que
ele é o “chefe”, o “dono” da Igreja. Viu? Até na vida religiosa temos a ideia
de que há um patrão.
Outra atitude muito
típica na nossa cidade: o consumo de bebida alcoólica que é excepcional e,
embora não haja dados estatísticos, é provável que a média de consumo por
habitante seja uma das maiores do Estado. Há um bar em quase toda esquina. Há
várias danceterias e casas de show. Eventos que promovem a bebida acontecem
quase que diariamente, como apresentações de cantores e bandas de fora. Sem
contar os eventos patrocinados pela prefeitura, como carnaval, Vitsol,
aniversário da cidade, rally, em que há muitas vendas de bebidas nos entornos.
Vitória tem várias distribuidoras e as vendas no atacado são, em termos
financeiros, bastante satisfatórias. Até perto das escolas se vendem bebidas
alcoólicas. Aliás, eventos da educação envolvem álcool, principalmente os
juninos. O próprio comércio varejista dispõe de um arsenal de bebidas com
grande destaque em prateleiras e com uma variedade de dar inveja a
colecionadores. Até festa de aniversário infantil se divide em duas partes, uma
para as crianças e outra para os adultos e, nesta última, o critério é a
presença de bebida alcoólica. Em frente a muitas casas, percebem-se pessoas
conversando e degustando um vinho ou mesmo cerveja. Quantos finais de semana em
casa não há bebida? Às margens dos igarapés, nota-se o grande consumo de álcool
e onde ainda ficam latas e litros vazios para milhares de anos de decomposição.
Bem, nesse caso
pode-se dizer que Vitória do Xingu não tem problema de falta de bebida. Então,
do que mesmo se está reclamando?
Aí se chega a uma
questão de pseudomoral que consiste em atacar, com pretensa aparência moral,
aquilo que parece imoral. Ou seja, é dizer que a festividade de maio está
acabando por causa do padre que não deixa vender bebida alcoólica na barraca da
Santa. Isso seria “imoral”. Nesse caso, estariam com a moral aqueles que se
afastaram do evento por não perceberem seus anseios dionisíacos serem contemplados. Nesse caso, sem álcool, sem
festa.
Se há o costume de se
beber em quase todas as ocasiões e se percebe que isso não foi permitido em
determinado local, então o evento não vale, não significa nada. Agora se chega
à questão simbólica do álcool e do ato religioso em si.
Como a sociedade
constrói símbolos para representar valores, se mudam os símbolos, mudam-se os
valores. O problema é que nem sempre se mudam os valores que deveriam ser
mudados. A revolta por uma perda tida como importante faz com que alguém
contamine o símbolo todo. Por exemplo, se alguém que frequentava a barraca da
Santa por causa dos momentos de nirvana ali vividos em função dos efeitos do
álcool, de repente se vê na condição de ser orientado a primar por outros
valores, como a fé, e mais, percebe que a fonte do seu opiário não está mais
ali, então tudo e todos de lá são anulados e tidos como vilões que mudaram a
pseudomoral e, portanto, não têm o direito de submeter mais nada à apreciação
de moral nenhuma. Agora tudo é “imoral”.
Mas quando alguém ou
um grupo muda um valor (e consequentemente o símbolo) é preciso que instale o
novo valor e que seja promovida a nova simbologia. E isso houve. Por exemplo:
se o álcool foi retirado da barraca da Santa, em seu lugar foi instalado o
convite à prática religiosa por meio de atitudes mais cristãs e evangélicas. Aí
o problema começou. Por quê? Porque o álcool em si conduz a pessoa àquilo que
ela mais deseja: à concretização de delírios oníricos, à alucinação e fuga da
realidade opressora, pois as pessoas não entendem como uma sociedade seja tão
injusta a ponto de não resolver nada, deixando ao homem a única saída: fugir.
Fugir para não explicar nada, para não ver nada, para anular seus sentidos. E o
que isso resolve? A mesma coisa de que tudo que foi dito: nada. A fuga é
temporária. Mas muitos se imaginam abençoados quando fazem isso. Pensam estar
compartilhando com Deus um momento. Esse é um típico comportamento do homem:
fugir dele mesmo. Mas quem garante que Deus ouve na ebriedade do homem? A
muitos homens isso não interessa. Ou seja, o homem adora cultivar símbolos
vazios. E ignora os abstratos.
O que é mais prático?
Discutir a prática da fé e imergir em planos interiores de modo consciente ou
cortar a relação com o mundo com um ato simples de beber? Alguma dúvida quanto
à resposta? Não creio.
Mas outra coisa ainda
está em jogo. Se o símbolo novo, o dos valores da fé, agora é posto à prova e
questionado (embora com falácias, mas é contestado), então em razão de que e de
que símbolo se originou a festividade da padroeira? A tese até então sustentada
é a de que essa tradição católica servia para homenagear a mãe de Jesus e
render-lhe graças (em forma de pagamento de promessas) pelos milagres e pela
intervenção divina da santa junto a Deus. Talvez muitos nem imaginem isso
(muitos até pensam que a festa de maio são só as noites na barraca!), mas é
esse o pano de fundo do sentido religioso da festividade essencialmente
falando. E vem o problema: como nossa experimentação da fé cristã é como uma
lei que não se cumpre e se burla o tempo todo, então nunca ficou claro o que é
realmente praticar os atos cristãos. Ficando em aberto, o povo incrementa o
evento da forma que lhe é conveniente e adiciona elementos pagãos quantos forem
necessários. A presença de bebida alcoólica nunca foi e nunca será comprovação
de fé cristã nenhuma. Numa festa religiosa, portanto, ela apenas simboliza um
comportamento tipicamente social, assim como numa festa caipira da zona rural
não ser estranho ver tanta gente com chapéu de vaqueiro. Porém, o chapéu está
longe de uma comparação com a bebida, pois a nocividade dela e o amparo dele
são antagônicos.
A proposta da Igreja
condiz com o que prescrevem os ensinamentos religiosos bíblicos, o que ocorre é
que o que é bíblico é tido como sublimação e algo indefinível pelo homem, que,
por sua vez, prima pelo concreto, pelo momento, pela situação criada em função
do que a bebida provoca. O homem, definitivamente, não consegue apreciar, ver
as nuances, refletir, compartilhar sentimentos humanitários, ser introspectivo.
Ele prefere que suas ações sejam atípicas, fora do comum, excêntricas e que os
que estão ao seu redor percebam isso.
Mas os que trocaram a
simbologia da festa não têm com o que se preocupar. Como dito antes, não falta
bebida na festa de maio, em junho, em julho, agosto, setembro, outubro, no ano
inteiro. O que falta é quebrar ou derreter o ferro do rompimento que se criou
entre o homem e o divino. E essa tarefa é a mais difícil. Pois as famílias
estão sendo derrotadas pelas influências de novos valores advindos dos meios de
comunicação e da tecnologia. As escolas estão perdendo para as redes sociais.
As igrejas estão caindo em descrédito. A política continua sendo a traça que
corrói a democracia. E o homem é um ser cada vez mais descrente de si mesmo.
Com tanto pessimismo assim, fazer o quê? Beber. Fugir. Fingir que o mal não
existe. Criar o “bem” da ilusão e da permissividade.
A outra forma é
aceitar que os valores mudam, que a sociedade muda e aprender a captar mais o
que é divino, sagrado, santo, puro, religioso.
Outro problema é
dizer que o padre está acabando com a festa. Quem não vai à festa é que acaba
com ela. Quem não compreende o novo símbolo é que está brigando por algo para
não se comprometer com a novidade e com o resgate de valores que, segundo a
própria Bíblia, deverão ser mantidos até um julgamento final. E como o homem
tem medo dessa prova e também a desconhece, de tanto ela demorar ele já acha
que não vai acontecer, então ele se permitiu criar todas as formas de fugir
dessa linha da prática cristã.
E como o padre não é
uma igreja, nem o símbolo dela, é bom que se saiba que ele sozinho não faz o
catolicismo. Ele é servo tanto quanto os outros. É mortal e pecador. E nessa
empreitada ele não está só. Ele não é patrão. A decisão de retirar a bebida da
barraca é coletiva, e deve ser prescrita conforme os valores do cristianismo e
de acordo com a situação específica, do alto grau de consumo, do número de
acidentes e até de mortes. Não que isso não vá deixar de acontecer, mas que
também caberá às escolas, aos políticos, à sociedade em geral repensar suas
ações e mudar o quadro de danos causados em função do consumo exacerbado de
álcool. Outra, catolicismo não é sinônimo de alcoolismo, pois muitas pessoas
mudam de religião para deixar de beber. É a mesma coisa de muitos remédios para
emagrecer que trazem na receita o seguinte: “Para fazer o efeito desejado, você
deve manter hábitos e alimentação saudáveis”. Então, o que mesmo vai fazer
efeito?
Isso ocorre porque
vivemos mais pela democracia que pela fé. Por isso que muitos dizem que bebem
porque a religião católica “não proíbe” beber. Isso não é um dito de fé, é um
amparo legal contido na Constituição. A questão da fé perpassa por outros
caminhos e ideologias.
Portanto, a festa de
maio precisa ser um símbolo do cristianismo aqui em Vitória e não do consumismo
dos fornecedores de bebida. Mas se isso é tão difícil de impregnar em nossas
práticas, de cristãos tão falhos que somos, logo só resta afirmar que se um dia
a festividade de Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos acabar, então, na verdade,
ela nunca existiu.
Mirinaldo, 27 de maio
de 2014.