quarta-feira, 28 de agosto de 2024

CIDADÃO VERDE




Cajueiro da Pagoa
A menina passa por ele. O menino passa por ele. A história também passa por ele. E ele está lá, vendo todas as histórias passarem, todas as carreatas passarem, todas as bandas, todos os desfiles. Ele não fala nada. Fica imóvel, não intacto. Por esses dias mesmo, coitado, sofreu uma queda. Queda não. Ah, sei lá o nome! Ele se machucou. Ou o machucaram. Tanto faz. Já está feito mesmo. Mas a pompa, a elegância, o seu gigantismo, a sua majestade, o seu folhear, o seu balançar, tudo nele é formosura. E que frutos! Que delícia!
Desde meu tempo de eu menino que o vejo. Não sei quando ele cresceu. Parece até que já nasceu gigante, que já nasceu frondoso, que já nasceu pronto.
A rua onde ele fica, a avenida onde ele fica mostraram-lhe e ainda lhe mostram que o tempo continua nos mudando. Que o estamos, inclusive, abandonando, que o estamos trocando pelos prazeres modernos, pelo Facebook, pelo Instagram, pelo Whatsapp. Que loucura a nossa. Que troca ridícula, trocar sombras e frutos doces por objetos com baterias. Aliás, essas baterias podem danificá-lo, comer suas raízes, cegá-lo.
Mais adiante, outra besteira: som alto demais, buzinas escandalosas, motos e carros se entrecortando, fumaças saindo pelos bocas dos veículos, homens matando outros homens com seus pneus, com suas máquinas, com seus brinquedos de se exibir. Nossa, quanta confusão. E ele lá, ainda tendo que suportar isso tudo.
Isso tudo não, ainda tem mais. Carros de propaganda, caminhões estrangeiros, carga e descarga de produtos... cheiro de carne logo ali! Um casal discutindo mais adiante, outro casal vai se beijar mais acolá (Epa! Tem criança passando, desfaz o beijo!), tem um camelô logo por ali, alguém deixou uma sacola aqui... e o cachorro... nossa, gente, o cachorro. Nem vou dizer o que ele fez ao pé do meu amigo! O odor mudou.
E não para, agora é final de semana, há uma cachacinha rodando num copo de mão em mão, uma música de Reginaldo Rossi. Passo e vejo um casal dançando, volto e os vejo brigando, saio e já estão se amando de novo. Chove e só um senhor sem nome, sem endereço, fica deitado. À noite, nossa! Beijos e mais beijos. E ele finge que não vê, afinal, a mulher pode ser casada, é melhor ele não falar. E dali saiu um menino, já faz nove meses. Bom, dele eu sei que não é fruto. Ufa!
E vem chuva, sol, vento, a coleta do lixo (quanto lixo!) que também leva a terra, terra com lixo: cigarro, garrafas vazias, folhas mortas, amarelas; vem um banco, o banco quebra, vem uma caixa, a caixa quebra, e passa a menina e passa o menino e é segunda-feira, e é terça-feira e ele... lá.
Passa o ônibus, passa o bloco. Aliás, ele guardou muitos blocos, ficou com eles na concentração. E passa o carnaval todo, com muitos ao pé dele, parece até um mestre-sala. E passa a menina faceira, sambando pelo meio-fio e fazendo de pouco daqueles cabelos verdes que ele tem. Passa também sua santa, a Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos, com os cristãos, é claro. Ele fica solene, já não é mais o assanhadinho daquela terça-feira de folia. Agora se curva, se benze e ora, e pede mais raiz, mais terra, mais água, mais filhos seus, afinal é sozinho para aguentar tanta história. E paga sua promessa, que não sei e nunca saberei qual foi.
E agora dança, pula fogueira, se faz de compadre de todo mundo; agora é xadrez, é São João. Agora estão ali as quadrilhas, as daqui e as de fora, e ele vê o espetáculo e não paga ingresso. Vê o futebol, vê as bolas. Ajuda aquele menino a recuperar a bola que saiu errada. Vê a cultura. É patriota, desfila em 7 de setembro, apoia Zumbi em novembro e dá presente ao menino de nosso Deus.
Vê de tudo, vê o atropelamento, vê o carro novo que chegou, o homem bom que saiu e o mau que foi perseguir outros homens. Vê a lama, o carro atolado, o comércio cheio e vazio, o comércio crescer e quebrar, a menina crescer, o crente orar, o velório seguir, vê o novo e o velho trocarem de mundo, vê o político passar para o poder, vê o poder passar para o político, vê o povo sem poder.
E só vê. Porque ver é o seu fazer. Dar a sombra ao fraco é o seu destino. E segue sendo o coração da cidade. E segue sendo o verde esplêndido, e segue sendo o alívio daquele vendedor ambulante logo ali, e segue sendo a esquina que alivia as crianças do malvado calor, e segue sendo a estátua verde, porque sempre soube manter-se na altivez, como um homem forte, um guerreiro destemido. Mas ele sabe que não é homem, é somente algo que ainda muito verá, que sempre terá a certeza de que é o filho da Pagoa, o menino das sombras que sempre chamaremos de nosso cajueiro.

Mirinaldo, 18 de fevereiro de 2014. Especialmente para o lançamento da OLP 2014, na Escola Aliança para o Progresso.

O OUTRO LADO DA LUZ


 
Por Mirinaldo
 
Em todo lugar da Terra pode haver luz. O Sol nos brinda com ela e nós a produzimos nas lanternas, no fogo, nas velas nas telas. Nossos olhos se enchem de luz. Por eles ela nos atravessa e converte as formas que constroem, para nós, a nossa inteligência. A luz serve a todos, até aos que fazem maldade. Ela pode estar na lanterna de um ladrão ou no foco de um médico em uma consulta. Luz é luz. 
Deus-Homem já disse uma vez: “O Sol brilha para todos”. Então, estamos sob a sua luz. Como a usamos é como decidimos viver.
Porém, há um ponto tão escuro em nós onde a luz não se abriga. Nesse ponto só há sons. Pulsar. Latidos. Vibrações. É o ponto do coração. A luz do mundo não o avista. Abstém-se de molestá-lo. Deixa-o só. Apenas um mal pode permitir que a luz o veja: a doença que leva à cirurgia. Saudável, um coração não se mostra. Daí vira metáfora: terra, amor, paixão. E recebe títulos e prêmios pelo que não é: não é terra, não ama, não se apaixona. É um símbolo. Um símbolo sem... luz.
Daí a luz, inconformada com tal restrição, infringe os sentidos literais e a ciência e recria-se em uma forma única: SENTIR. O sentir se camufla e afeta todos os seres por dentro. Ilumina-os nas áreas onde a luz do mundo não chega. O sentir clareia o coração e é o único capaz de vê-lo sempre e sempre. Ela se apaga quando a luz do mundo se esvai da natureza humana. Fora isso, o sentir é luz sem ciência, pois não precisa dela.
É por esse lado da luz que eu me mostro e te vejo. Mas só se permite que tal ato se efetive quando alguém sabe que eu estou no mundo, porque o que eu sou só se conhece pelo lado oculto da luz. A minha luz. A tua luz. E somente uma luz perpassa pela minha luz e pela tua luz: a divindade. É no entrecruzamento delas que se cria o amor verdadeiro. Mas amor não tem a luz do mundo, nem daqui ele é, ele é o equilíbrio de todas as luzes. Por isso, explica-se Jesus. Por ele, uma luz vive na outra. Por ele, sabe-se o que é Natal. 
Se quisermos ver quem cada um é, é preciso que consigamos atravessar a luz do Sol, a luz dos homens e chegar à luz divina e dela retornar ao Sol. 
Se conseguirmos, isso é Natal, do contrário, são só árvores piscando... piscando... piscando...

Desocultemos nossas luzes entre nós.

A SINUOSIDADE DA SERPENTE





E rola pelo chão a maldita. Serpenteia a cauda e estremece as presas. Cabeça quieta, veneno agitado. Língua tinindo pelo sangue de um fraco. Aquieta-se de novo. Era só um vil rato a passar, mas ia ao longe. Não valia a ela o sacrifício de rastejar. E descansa.
Agora é mansa e fria. Parece sem ofensa e sem perigo. Reluz o couro ao reflexo do dia. Reluz o couro ao reflexo da lua. E ali, queda. E ali, em seu habitat, em seu mundo de serpente, trança-se. Parece não mais ofender a nada da natureza que ela só vê de baixo para cima. Vem desde os tempos de Eva e de Adão. Foi a infeliz criatura testemunha do pecado original. Foi a ambiciosa detentora da árvore da ciência. E agora...
Agora não conhece mais a ciência. Mas a ciência deu-lhe a resposta: teu veneno, tua má sorte. Teu veneno, fim do teu projeto de morte. E ali queda. E ali, retorcida, de corpo para o próprio corpo, de cabeça para a cauda, fica a serpente e esquentar o chão. A esquentar-se. A digerir.
Mas no seu entorno, nada é seguro. Tudo pode ser fulminante. Tudo pode arquejar. Tudo pode resvalar. Nenhum tropeço é permitido. Tudo é sob os preceitos serpentinos da majestosa figura de pose ingênua. Nenhum lance lhe é alheio. Nenhum movimento pode lhe ser ausente.
E ali, na forma sinuosa e de serpente, na forma sem languidez, ela completa o lance do instinto sério, frio e agudo. Dá o bote!
Foi o rato que voltou.
Mirinaldo, 3 de abril de 2013.