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Cajueiro da Pagoa |
A menina passa por ele. O menino passa por ele. A história também
passa por ele. E ele está lá, vendo todas as histórias passarem, todas as
carreatas passarem, todas as bandas, todos os desfiles. Ele não fala nada. Fica
imóvel, não intacto. Por esses dias mesmo, coitado, sofreu uma queda. Queda
não. Ah, sei lá o nome! Ele se machucou. Ou o machucaram. Tanto faz. Já está
feito mesmo. Mas a pompa, a elegância, o seu gigantismo, a sua majestade, o seu
folhear, o seu balançar, tudo nele é formosura. E que frutos! Que delícia!
Desde meu tempo de eu menino que o vejo. Não sei quando ele
cresceu. Parece até que já nasceu gigante, que já nasceu frondoso, que já
nasceu pronto.
A rua onde ele fica, a avenida onde ele fica mostraram-lhe e
ainda lhe mostram que o tempo continua nos mudando. Que o estamos, inclusive,
abandonando, que o estamos trocando pelos prazeres modernos, pelo Facebook,
pelo Instagram, pelo Whatsapp. Que loucura a nossa. Que troca ridícula, trocar sombras
e frutos doces por objetos com baterias. Aliás, essas baterias podem
danificá-lo, comer suas raízes, cegá-lo.
Mais adiante, outra besteira: som alto demais, buzinas
escandalosas, motos e carros se entrecortando, fumaças saindo pelos bocas dos
veículos, homens matando outros homens com seus pneus, com suas máquinas, com
seus brinquedos de se exibir. Nossa, quanta confusão. E ele lá, ainda tendo que
suportar isso tudo.
Isso tudo não, ainda tem mais. Carros de propaganda,
caminhões estrangeiros, carga e descarga de produtos... cheiro de carne logo
ali! Um casal discutindo mais adiante, outro casal vai se beijar mais acolá
(Epa! Tem criança passando, desfaz o beijo!), tem um camelô logo por ali,
alguém deixou uma sacola aqui... e o cachorro... nossa, gente, o cachorro. Nem
vou dizer o que ele fez ao pé do meu amigo! O odor mudou.
E não para, agora é final de semana, há uma cachacinha
rodando num copo de mão em mão, uma música de Reginaldo Rossi. Passo e vejo um
casal dançando, volto e os vejo brigando, saio e já estão se amando de novo. Chove
e só um senhor sem nome, sem endereço, fica deitado. À noite, nossa! Beijos e
mais beijos. E ele finge que não vê, afinal, a mulher pode ser casada, é melhor
ele não falar. E dali saiu um menino, já faz nove meses. Bom, dele eu sei que
não é fruto. Ufa!
E vem chuva, sol, vento, a coleta do lixo (quanto lixo!) que
também leva a terra, terra com lixo: cigarro, garrafas vazias, folhas mortas,
amarelas; vem um banco, o banco quebra, vem uma caixa, a caixa quebra, e passa
a menina e passa o menino e é segunda-feira, e é terça-feira e ele... lá.
Passa o ônibus, passa o bloco. Aliás, ele guardou muitos
blocos, ficou com eles na concentração. E passa o carnaval todo, com muitos ao
pé dele, parece até um mestre-sala. E passa a menina faceira, sambando pelo
meio-fio e fazendo de pouco daqueles cabelos verdes que ele tem. Passa também sua
santa, a Nossa Senhora Auxílio dos Cristãos, com os cristãos, é claro. Ele fica
solene, já não é mais o assanhadinho daquela terça-feira de folia. Agora se
curva, se benze e ora, e pede mais raiz, mais terra, mais água, mais filhos
seus, afinal é sozinho para aguentar tanta história. E paga sua promessa, que
não sei e nunca saberei qual foi.
E agora dança, pula fogueira, se faz de compadre de todo
mundo; agora é xadrez, é São João. Agora estão ali as quadrilhas, as daqui e as
de fora, e ele vê o espetáculo e não paga ingresso. Vê o futebol, vê as bolas.
Ajuda aquele menino a recuperar a bola que saiu errada. Vê a cultura. É
patriota, desfila em 7 de setembro, apoia Zumbi em novembro e dá presente ao
menino de nosso Deus.
Vê de tudo, vê o atropelamento, vê o carro novo que chegou,
o homem bom que saiu e o mau que foi perseguir outros homens. Vê a lama, o
carro atolado, o comércio cheio e vazio, o comércio crescer e quebrar, a menina
crescer, o crente orar, o velório seguir, vê o novo e o velho trocarem de
mundo, vê o político passar para o poder, vê o poder passar para o político, vê
o povo sem poder.
E só vê. Porque ver é o seu fazer. Dar a sombra ao fraco é o
seu destino. E segue sendo o coração da cidade. E segue sendo o verde esplêndido,
e segue sendo o alívio daquele vendedor ambulante logo ali, e segue sendo a
esquina que alivia as crianças do malvado calor, e segue sendo a estátua verde,
porque sempre soube manter-se na altivez, como um homem forte, um guerreiro
destemido. Mas ele sabe que não é homem, é somente algo que ainda muito verá,
que sempre terá a certeza de que é o filho da Pagoa, o menino das sombras que
sempre chamaremos de nosso cajueiro.
Mirinaldo, 18 de fevereiro de 2014. Especialmente para o lançamento da OLP 2014, na Escola Aliança para o Progresso.