Por Mirinaldo
Já falei
algumas vezes a certo público: “Leiam vocês mesmos o Evangelho e vão descobrir
que ninguém vive em Cristo”. E não vive mesmo. Não estou me referindo a
extensas horas, dias, meses, anos, à vida toda de dedicação às realizações fidedignas
aos compromissos de cunho templário, de calendário bem cumprido de presença em
eventos religiosos. Nem ao pagamento do dízimo religiosamente a cada mês. Muito
menos aos louvores criativos, bem ritmados, introspectivos, intimistas,
envolventes enquanto os ouvimos e cantamos. Também não me refiro às
superpregações, aos megaeventos religiosos, aos cantores e pregadores popstars, às cenas de milagres, às
curas, nem aos seus efeitos eufóricos, extasiantes sob vozes potentes e
berrantes com suor no rosto. Digo que também não me refiro à decoreba de
versículos, às leituras intensas da Bíblia ou aos cursos de formação em templos
ou em retiros espirituais. Ainda não me
refiro às atitudes de “caridade” com cestas básicas de natal que algumas
igrejas fazem, desde que as fotos sejam logo postadas. Não me refiro a fechar
os olhos, chorar, cair de joelhos, manifestar convulsão pelo corpo todo, gritar,
falar em línguas (que Jesus nunca falou), dar testemunho de que saiu da pobreza
e passou de um carro de mão a uma Ferrari, em um mês depois do batismo em que “aceitou
Jesus”, numa premissa de que antes se adorava ao Diabo porque era católico. Também
não estou me referindo às postagens em rede sociais sobre “Digite seu amém”,
fotos de famílias e casais (heteros) “felizes” associadas a frases bíblicas ou
àquele “Glória!”, “Oh glória!”, que mais parece estar chamando alguma senhora
chamada Glória. E menos a escutar pregações suaves ou coercitivas, em que quem
fala exalta a si mesmo como escolhido e que os que o seguem serão escolhidos
também. Enfim, nada disso (e muito mais!) é prova da vivência do Evangelho.
Tudo isso são apenas ritos que só valem por si mesmos. Nunca se estendem a um milésimo
de segundo sequer da vida em ação
fora dos templos. Acabam-se em hipocrisias, conforme dito pelo próprio Cristo.
E antes que alguém rebata afirmando que se tratam de eventos que têm natureza
de confinamento e por isso são assim, digo que o problema é justamente este:
neles fica tudo o que é considerado religioso, mero cristianismo, mas nunca Cristo.
Ou seja, o cristianismo tornou-se rito com local e hora marcados.
Cristo
colocou-nos, para viver o Evangelho, o que podemos chamar de ato sobre-humano. Está muito além de
nós. Não há prova espiritual maior em toda a história que seguir fielmente o
Evangelho. Só agirmos como meros seres humanos reconhecedores do pecado nunca
será suficiente. Imagine o quanto é sobre-humano perdoar setenta vezes sete, abandonar
ou não querer possuir riquezas, viver em condições financeiras e de posses
igualmente o seu vizinho pobre, repartir o seu lucro para não acumular fortunas,
evitar todos os luxos, não cobiçar, abrir mão do que tem para viver em
simplicidade, nunca querer ser rico (“É
mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no
reino dos céus” – Jesus), ajudar os mais fracos até quando você for fraco
também, ajudar o próximo sem qualquer propaganda de que você fez isso, pagar o
dízimo sem esperar que seus bens se multipliquem, emprestar e não esperar que se
devolva, dar a outra face, orar sem que ninguém na Terra saiba disso, ser
honesto, ser fiel, jejuar sem nenhuma propaganda desse feito, amar o seu inimigo,
abandonar-se para viver em função dos outros. E por aí vai. O ser humano
consegue tal vida verdadeiramente evangélica? Pergunto, pois servir a Deus,
seguindo em vida o Evangelho, não tem nada de fácil. Se você diz que é feliz
servindo ao Senhor, então você não pode esperar a salvação, você é simplesmente
um covarde que finge que problemas não existem porque você já está “contemplado”
pela salvação, ou seja, os outros é que carreguem suas cruzes. O céu é onde se
encontrarão os que peregrinaram pelo mundo sem acúmulo de posses, provando as
dores das perseguições dos ricos, dos capitalistas, e, mesmo assim, dando sua
vida pelos pobres e mansos. Não foi assim que Cristo fez? Ou ele passou trinta
e três anos de joelhos olhando para o céu?
Viver o
Evangelho é absolutamente dor, sofrimento, luta contra si, contra as forças
materialistas interiores, contra o seu desejo de supremacia sobre os outros. É
ir tomar o sofrimento de outrem, conhecer as dores de quem você nunca viu e
agir procurando formas de aliviá-las, mesmo quando você as absorve para si.
Nunca é tentar tornar o pobre um rico, pois a recompensa terrena retira a
recompensa espiritual. Os que pregam que se tem que trabalhar para acumular
bens são os que estão de olho nesses bens, pois sobre essas posses haverá as
obrigações religiosas do dízimo, muito rentáveis para o acúmulo dos donos das
denominações. São ideias que obrigam o cristão a trabalhar sob o pretexto de
que Deus retribui em dobro o que a ele é dado. Isso não é e nunca foi Cristo (e
sim cristianismo), é uma prática copiada do sistema financeiro, quando o que se
deposita deve ser recolhido com juros e correções. Deus seria um negociador.
Mas o gerente é o dono da denominação. É o capitalismo contraindo a religião.
Nesse caso, “Não
se pode servir a dois senhores”. Viver o Evangelho e servir ao capitalismo é um
discurso hipócrita e absolutamente materialista, nunca Cristo. Para se viver o
capitalismo, é preciso, antes de tudo, agir sobre os outros para arrancar deles
algo que lhes pertencia pelo direito social, o que pode ser a vaga, o dinheiro,
a terra, a casa, o salário, o voto, a plantação, a ideologia e por aí vai. É
ter algo como seu. E somente seu. Privado, ou seja, que não é dos outros, nem
de Deus. Mesmo que se pague à igreja o seu dízimo religiosamente (nada a ver
com a oferta da viúva), o capitalista não está devolvendo nada a Deus, pois dá
as sobras, e sobras subentendem que o lucro já foi conquistado. Só se devolve a
Deus o que é dele: a produção em comunidade.
Se Jesus
recusou todas as riquezas e reinos do mundo quando o Diabo o tentou no deserto,
é porque a riqueza não leva mesmo à salvação, já que o reino de Deus não
pertence a este mundo. Nesse caso, ganhar a vida no céu é perdê-la na Terra, e
não fazer a sua vida se tornar abundante e farta de lucros e posses, pois, para
se chegar a isso, você terá de explorar a produção dos outros. Ou seja, outros
terão menos que você. E você se lembra da Santa Ceia e do lava pés? Pois são os
rituais da humildade em não ter bens e servir aos outros, além de comungar a
produção. Ou seja, Jesus não deu pão e vinho como forma de pagamento, mas como
forma de comunhão em que todos comem o que todos também produzem. E isso exige
esforço, luta, abnegação, nunca interesse e comodidade. Nesse caso, o
capitalista está fora, pois ele paga como forma de manter para si a parcela
maior e nisso o Evangelho não consiste. Quem disser o contrário, é somente capitalista.
Se você ainda
assim disser que o que a pessoa tem é fruto do trabalho dela, então você é
capitalista e anticristo do mesmo jeito. Pois o trabalho também é uma forma de
comunhão dentro do cristianismo verdadeiro. A hierarquia na produção é
horizontal, rotativa e deliberada por grupo. O líder é o norteador dos
princípios e dos valores, para que a força não se sobreponha ao bem-comum, mas
se foque no suprimento das necessidades de todos. Alegre uma plateia falando
isso, mas morra a ter que praticar isso. Nada há de fácil nesse modo cristão de
produção. E onde achar tanta força para viver, sem demagogia, numa vida assim,
sem ceder aos caprichos dos avanços tecnológicos e das riquezas? A resposta é:
achar a nossa sobre-humanidade.
Possuir bens
gera uma vida confortável e prazerosa, por isso os cristãos percebem as
conquistas como bênçãos, mas desconhecem como a produção se deu. Sobra não é
bênção. O salário é sobra do capitalista. O pagamento é sobra do capitalista. O
acúmulo também não é bênção. Lucro não é bênção. Portanto, oferecer a Deus o
agradecimento por uma vida confortável, considerando que você não passa as
necessidades que os outros passam por ter seu salário ou seu lucro certo, é
hipocrisia, é prática adotada do capitalismo, é exibição social da sua vida
como forma de mostrar que você realizou uma superação, que venceu as
dificuldades. Ou seja, uma vida tida como de superação é uma vida anticristo,
pois você deixou seus semelhantes para trás. Não há nada que agracie tal ato no
Evangelho (ao menos nos Evangelhos verdadeiros).
Atualmente,
embora haja uma propagação sobre Cristo, ela é apenas comercial, capitalista,
política, para fins fora do Evangelho. Se durante dois mil anos não foi
possível pregar corretamente a palavra de Deus e ela se tornou mero pano de
fundo do capitalismo, então este vence em qualquer arena onde a disputa seja a
moral e a ética. Estas seguem os moldes do lucro e das ideologias que defendem
o capital. Numa guerra em que disputem a direita e a esquerda, por exemplo, o
Evangelho não aparecerá unilateralmente. Nesse caso, mesmo ele sendo citado
como argumento, o seu efeito é inútil, pois nunca servirá aos interesses
capitalistas em essência, mas servirá perfeitamente como recurso de indução
populista. Moral e ética, assim, são atores de conveniência totalmente aquém do
Evangelho.
Os que
defendem que Deus intervém em favor da força e da segregação das raças, ou que
vale a tortura, a misoginia, a homofobia, a violência, a ditadura, ou ainda que
os humanos sejam vistos sob a ótica do naturalismo, na verdade defendem não o
Evangelho, mas suas visões em conformidade com os interesses que lhes foram
implantados em face da alienação terrena alimentada pelo falso evangelho. Se
não se vive uma ideia, então ela serve para dizer qualquer coisa. Nesse caso,
se não se vive o Evangelho, então se pode citar qualquer trecho da Bíblia,
extasiar o público, e temos um “ensinamento” bíblico postulado na falácia de um
valor moral e ético tão aparentemente profundos que para quebrar tal afirmação
só mesmo outra falácia, desnuda da essência de Cristo, mas recheada de
cristianismo pirotécnico. A tortura passa a ser vista como legítima, pois os
humanos podem definir sem Deus – mas com pauta nos seus versículos – o que é
sagrado ou não. Se a tortura atingir os meus adversários, então ela é sagrada. Quando
a dor dos outros me é insensível, eu sou apenas cristão, não de Cristo. O
cristão pauta suas atitudes numa pretensão materialista, em favor do
capitalismo, meio ideal que mina os lucros sobre a força do trabalhador. Se a
dor dos outros me toca, passo do cristianismo para Cristo. Pois Cristo nunca
cedeu à tentação de ter, mas
entregou-se inteiro para ser, algo
que nos é sobre-humano.
O campo
político ajuda a desmascarar o cristianismo do verdadeiro Cristo. O primeiro
foi perfeitamente planejado para os fins do materialismo terreno. Saiu do
laboratório romano para institucionalizar as relações de poder e força. Cristo
mesmo não cedeu a nada. Por isso morreu. Assumir uma bandeira em que o Brasil
seria acima de tudo e Deus acima de todos não esconde a farsa do falso
cristianismo, pois revela simplesmente que o materialismo cabe ao homem e este
caberia a Deus, mas este deve ficar longe das conquistas materiais daquele,
apenas abençoar o ouro cavado pela criatura. Nesse caso, Deus só serve para a
ideia de que os que conquistam são gloriosos e benditos, afastando os que
laboram em prol das propriedades fartas dos grandes. Nunca o Evangelho
verdadeiro viveria aí.
Além da
indiferença à dor do outro, o cristão do falso cristianismo, a fim de manter
seu foco em conquistas dentro dos ideais do capitalismo, é também favorável a
que se provoque a dor no outro. Daí vale lançar sobre o próximo qualquer forma
de ódio, xenofobia, misoginia, homofobia, racismo, machismo, fascismo, feminicídio,
homicídio, intolerância, tortura e morte. Mas para que tal processo seja
eficiente e tido como cristão (falsamente), há que se eleger quem não comporá o
grupo a ser perseguido. E não são os fracos que criam os certames. Eles só
podem ocupar ou o papel de massa para avolumar a opressão ou para serem as
vítimas. As regras vêm dos grupos de supremacia. Eles têm cor (branca), origem
(europeia), ideais (lucro), sistemas (capitalismo), ideologias (fascismo,
nazismo) e atitudes (preconceito, violência). Mas como estão a serviço do
poder, acabam por sujeitar aos seus interesses os grupos menos favorecidos. Daí
a manipulação do Evangelho para atingir o pacto da mediocridade. Sobre as
palavras de Cristo passa a valer o que dizem os pregadores e não mais o próprio
Cristo. Temos uma profecia muito mais satânica que cristã. Tudo passa então ao
completo interesse da ascensão social, completamente sem o viés de Cristo, já
que seu Evangelho é outro.
Daí que você
observar um ditador alegando que matará em nome da ordem, da justiça e dos
valores cristãos e ter milhões que o aplaudam não deve soar estranho. Mas claro
que sempre devemos dar um olhar combativo, pois quem souber o que é o
Evangelho, por ele deve lutar. Os conformados não fazem qualquer alteração,
pois o comodismo capitalista encarcera bons alienados na leitura interpretada
pelos que ecoam a voz dos sistemas opressores.
Também você
não deve arregalar os olhos quando alguém com uma bíblia na mão defender o
aborto, a pena de morte, o porte de arma, a execução sumária de pobres, negros,
índios, mulheres e homossexuais, pois você está querendo ver Cristo aí, mas
você ainda não entendeu que se trata apenas de cristianismo, um conceito
amplamente moderno de usar o nome de Cristo em prol de sistemas capitalistas
que sempre alteraram as versões bíblicas para se adaptarem ao trabalho, ao
consumismo e ao lucro.
Portanto, a
violência a que chegamos hoje no Brasil não ocorre por conta da falta da
palavra de Deus, mas sim porque o homem não o deixou falar, apenas fez as
interpretações que lhe interessavam e lhe interessam até hoje. O único sistema
que realmente se sobrepõe a todos os demais é o capitalista. O cristianismo
apenas é uma veia desse sistema principal. E se um pobre, o único agraciado
pela salvação eterna, segura a bandeira dos sistemas superiores e opressores, é
porque, de novo, trata-se de um reles cristianismo. Cristo, mesmo, está
esperando que sua palavra seja aberta e vivida, pois em algum momento ninguém
mais suportará esse cristianismo anticristo. E, então, vem o fim.