terça-feira, 29 de janeiro de 2013

VIDA NA VEIA





Beberás o meu sangue
Como um louco a devorar seu suco amargo
Comerás minha carne
Como lobos famintos no covil
Vais a me formar em deserto
Como fizeste a teu coração:
Limpo de ti mesmo.
E eu?
Eu fui como as entranhas de tua mãe
Como o leite que dela tomaste
Como o suor do parto amargo que te pariu.
Eu fui o teu alfa –
Embora te tornaste o meu ômega.
Fui todo o líquido de tua carne fraca
Fui eu que saciei tua erva, fui teu chá
Fui o que limpou tuas feridas abertas
Quando aqui chegaste.
E quando chegaste fui o teu norte,
O teu rumo, a tua sorte.
Eu te chamei aqui - e tu vieste.
Vieste quando eu nem sabia o teu nome.
Vieste não para me ver, me contemplar
Vieste como também já foste a outros rumos:
Vieste sonhar longe de tuas longes terras.
E antes de ti
Antes de teu nome em meu sangue batizado
Junto com as estrelas vivas e mortas
Junto com as vozes das trevas deste mundo
E com o som da luz,
Eu vim,
Eu existi,
Eu estou aqui.
E aqui sempre estive para ti.
Para tu me amares.
Não mais como à tua mãe,
Como à tua esposa, como a teus filhos,
Nem como a teu Deus.
Apenas pelo que de comum há em mim
E em ti: a vida.
Ela aqui nos fez uma só coisa: existência.
E toda existência,
Frágil como seja,
É tão sutil que a ti enganou.
Te fez pensar em ser um ser novo
Um gigante!
Uma coisa além de teu Deus.
Mas a tua sorte,
Aquela que em mim encontraste
Lançaste à morte
E da morte não soubeste tirá-la.
E não sendo capaz de bem me ter
De comigo conviver
De comigo plantar
De comigo criar teus filhos
De comigo resguardar a tua história,
Saíste de mim.
Vestiste tuas lindas roupas
Escreveste em teu perfumando papel
Esticaste teu arame com farpas
Excluíste os teus
Mataste os teus!
Querias ser só tu...
Somente tu e eu.
E nada tu foste!
E nada tu serás.
Nada tu já és.
Morto já estás.
Mas eu...
Eu,
Que em minha serena cintilação,
Reflexo do nosso Sol,
Vi tua história,
Vi tua vida
(Quando nem vida ainda era)
Ainda estou aqui.
E teus pais,
Teus avós,
Teus outros índios
Eles passaram por mim
Eles viveram em mim.
Uns se mataram em minhas entranhas
Outros foram devorados por meus aquáticos bichos
Muitos foram levados para longe.
Eu os vi fechar seus olhos,
Eu ouvi seus últimos suspiros,
Eu ouvi os tiros,
Os sons das foices,
Dos facões,
Das navalhas.
Eu ouvi os gritos dos escravos,
A dor da onça,
O choro dos macacos,
O cantar das guaribas,
O grito das crianças.
Eu vi todas as lágrimas dos que ficaram
E que depois se foram
E te deixaram aqui.
Todos passaram.
Todos tiraram o seu leite
O leite da minha seringa,
Comeram os peixes que por mim foram paridos.
E se foram.
E não mais estão aqui.
Nem eles
Nem os peixes.
Os ricos, os pobres.
Todos sentiram um pouco de mim em mim.
E tu ficaste.
Ó compaixão que de ti senti!
Chorei milhões de anos por tua causa.
E cada gota ainda está em mim.
E tu as queres enxugar.
Mas eu sei chorar,
E vou chorar!
Pois sou uma criança.
Eu ainda cresço por todos os séculos
E tu?
Até quando pensas que vais crescer?
Eu desfiz as rochas, eu formei as praias
E tu?
Que praias fizeste como as minhas?
Que pensas saber fazer de belo com estas rochas?
Não conheces nem o ventre de tua mãe!
Enquanto eu alimento cada célula de teu corpo de barro
Até te lavo quando te embriagas
Quando te cortas
Quando tu cortas o teu irmão.
Diante de ti eu sou eterno!
Eu sou o tempo que nem consegues contar
E tu?
És somente o segundo fatal
A fatalidade do teu egoísmo.
Tu morrerás!
E eu verei teus netos.
Tu nem sabes onde vais ficar
Mas eu estarei aqui para molhar tua tumba
Para lavar o teu sangue
E a continuar com teus netos.
Mudarás minha forma.
Mudarás o meu caminho.
Mas nunca mudarás o que eu sou.
Quanto a ti, mudarás a tua sorte.
Ah! Quando se muda a sorte, nenhum caminho
Conduz.
Tudo se perde...
Tu voltarás ao teu barro!
Passarás por aqui sem cumprir o teu destino
O destino dado por teu Deus.
E teu Deus sentirá vergonha de ti
Ele será contra ti
Porque tu o abandonaste.
Tu agora me rompes os caminhos
Entravas minhas artérias
Cortas minhas veias
Queimas a minha pele
Amarelas a minha cor
Envenenas os meus peixes
Expulsas os teus semelhantes
Me humilhas o quanto podes.
Mas isso não me findará
Não me sepultará
Não tirará o meu último suspiro.
Eu serei a dor e terei a ferida
Mas nunca sucumbirei
Ante toda a existência.
Eu sou resistência.
Eu serei o soldado ferido
Mas não o morto.
Eu serei o peito baleado
Mas não o corpo caído no chão
Eu serei o sangue de Doroty
Mas não serei a cabeça que tu erguerás como triunfo.
Teus tratores cortarão o meu corpo em mil pedaços
Mas em milhões de anos ainda aqui estará minha alma!
Teu progresso te renderá bilhões em fortuna
Mas a minha força será como as distâncias entre as galáxias.
Construirás tuas cidades
Erguerás tuas pontes
Acenderás tuas luzes
Dançarás falsamente com os índios
Passarás o teu asfalto
Erguerás tuas torres
E serás a potência que tu queres ser.
Mas nunca
Nunca!
Absolutamente nunca!
Conseguirás arrancar uma gota sequer
Do ser que sou, fui e serei.
Agora...
Quanto a ti...
Pobre passageiro
De uma galáxia,
Ser de pequenos segundos sobre a Terra,
Criatura futuramente extinta
Ah!
Ai!
Quanto a ti:
Verei o teu choro
Verei tua morte e a de teus filhos
E de todas as tuas gerações futuras
Verei a tua fome
Os teus assassinatos
Os teus altos preços
A tua cara farinha!
Verei o teu sangue sobre a terra
Ainda por um mísero pedaço de pão
Verei tua fome te matar aos poucos
Verei até o improvável: a tua sede.
Verei as tuas crianças chorarem de dor
De falta de remédio
De falta de escola
De falta de vida
E testemunharei todos os teus declínios
Verei teus olhos se fecharem pela última vez
Quando ainda quererás vida
E vida não terás mais
E vida nem vida será!
Eu estarei amarrado.
Eu estarei quieto na minha angústia.
Eu chorarei pelos inocentes: os teus filhos.
Mas não estenderei as minhas mãos
Para o teu socorro.
Não chorarei em vão.
Não estarei prisioneiro em vão.
E não serei eu o autor disso tudo
Não serei o culpado de nada
Pois sabes que ainda sou criança
Ainda brinco entre as rochas
De Belo Monte
Ainda corro entre as praias
Ainda levo as canoas
Ainda sou doce
Ainda sou inocente.
Tu?
Tu me amarrarás ainda um bebê
E eu crescerei nas tuas amarras
E enquanto eu for preso
Tu serás o condenado!
Tu viverás sem sorte...
Errante...
Pobre...
Miserável de espírito!
E eu levarei minhas riquezas a outros pontos
Ainda chegarei ao mar
Ainda verei as baleias
Ainda saberei o que é o horizonte.
Enquanto tu...
Só verás o nada que serás tu mesmo.
E eu serei o cumpridor da minha existência
Eu serei o que dará satisfações justas ao nosso Deus
E tu serás a cobra rastejando no deserto
Do teu coração.
Serás o nada de ti.
Enquanto eu seguirei o meu leito
Seguirei a minha sorte
E, embora amarrado,
Embora acorrentado,
Embora recolhido,
Embora com as veias estouradas,
Eu vou seguir até o mar
Sendo eu mesmo a minha liberdade
A minha força
A minha vida
seguindo sempre...
O meu curso de rio.  

(Mirinaldo, 15 de janeiro de 2013)











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