Beberás o
meu sangue
Como um
louco a devorar seu suco amargo
Comerás
minha carne
Como lobos
famintos no covil
Vais a me
formar em deserto
Como fizeste
a teu coração:
Limpo de ti
mesmo.
E eu?
Eu fui como
as entranhas de tua mãe
Como o leite
que dela tomaste
Como o suor
do parto amargo que te pariu.
Eu fui o teu
alfa –
Embora te
tornaste o meu ômega.
Fui todo o
líquido de tua carne fraca
Fui eu que
saciei tua erva, fui teu chá
Fui o que
limpou tuas feridas abertas
Quando aqui
chegaste.
E quando
chegaste fui o teu norte,
O teu rumo,
a tua sorte.
Eu te chamei
aqui - e tu vieste.
Vieste
quando eu nem sabia o teu nome.
Vieste não
para me ver, me contemplar
Vieste como
também já foste a outros rumos:
Vieste
sonhar longe de tuas longes terras.
E antes de
ti
Antes de teu
nome em meu sangue batizado
Junto com as
estrelas vivas e mortas
Junto com as
vozes das trevas deste mundo
E com o som
da luz,
Eu vim,
Eu existi,
Eu estou
aqui.
E aqui
sempre estive para ti.
Para tu me
amares.
Não mais
como à tua mãe,
Como à tua
esposa, como a teus filhos,
Nem como a teu
Deus.
Apenas pelo
que de comum há em mim
E em ti: a
vida.
Ela aqui nos
fez uma só coisa: existência.
E toda
existência,
Frágil como
seja,
É tão sutil
que a ti enganou.
Te fez
pensar em ser um ser novo
Um gigante!
Uma coisa
além de teu Deus.
Mas a tua
sorte,
Aquela que
em mim encontraste
Lançaste à
morte
E da morte
não soubeste tirá-la.
E não sendo
capaz de bem me ter
De comigo
conviver
De comigo
plantar
De comigo
criar teus filhos
De comigo
resguardar a tua história,
Saíste de
mim.
Vestiste
tuas lindas roupas
Escreveste
em teu perfumando papel
Esticaste
teu arame com farpas
Excluíste os
teus
Mataste os
teus!
Querias ser
só tu...
Somente tu e
eu.
E nada tu
foste!
E nada tu
serás.
Nada tu já
és.
Morto já estás.
Mas eu...
Eu,
Que em minha
serena cintilação,
Reflexo do
nosso Sol,
Vi tua
história,
Vi tua vida
(Quando nem
vida ainda era)
Ainda estou
aqui.
E teus pais,
Teus avós,
Teus outros
índios
Eles
passaram por mim
Eles viveram
em mim.
Uns se
mataram em minhas entranhas
Outros foram
devorados por meus aquáticos bichos
Muitos foram
levados para longe.
Eu os vi
fechar seus olhos,
Eu ouvi seus
últimos suspiros,
Eu ouvi os
tiros,
Os sons das
foices,
Dos facões,
Das
navalhas.
Eu ouvi os
gritos dos escravos,
A dor da
onça,
O choro dos
macacos,
O cantar das
guaribas,
O grito das
crianças.
Eu vi todas
as lágrimas dos que ficaram
E que depois
se foram
E te
deixaram aqui.
Todos
passaram.
Todos
tiraram o seu leite
O leite da
minha seringa,
Comeram os
peixes que por mim foram paridos.
E se foram.
E não mais
estão aqui.
Nem eles
Nem os
peixes.
Os ricos, os
pobres.
Todos
sentiram um pouco de mim em mim.
E tu
ficaste.
Ó compaixão
que de ti senti!
Chorei
milhões de anos por tua causa.
E cada gota
ainda está em mim.
E tu as queres
enxugar.
Mas eu sei
chorar,
E vou
chorar!
Pois sou uma
criança.
Eu ainda
cresço por todos os séculos
E tu?
Até quando
pensas que vais crescer?
Eu desfiz as
rochas, eu formei as praias
E tu?
Que praias
fizeste como as minhas?
Que pensas
saber fazer de belo com estas rochas?
Não conheces
nem o ventre de tua mãe!
Enquanto eu
alimento cada célula de teu corpo de barro
Até te lavo
quando te embriagas
Quando te
cortas
Quando tu
cortas o teu irmão.
Diante de ti
eu sou eterno!
Eu sou o tempo
que nem consegues contar
E tu?
És somente o
segundo fatal
A fatalidade
do teu egoísmo.
Tu morrerás!
E eu verei
teus netos.
Tu nem sabes
onde vais ficar
Mas eu
estarei aqui para molhar tua tumba
Para lavar o
teu sangue
E a
continuar com teus netos.
Mudarás
minha forma.
Mudarás o
meu caminho.
Mas nunca
mudarás o que eu sou.
Quanto a ti,
mudarás a tua sorte.
Ah! Quando
se muda a sorte, nenhum caminho
Conduz.
Tudo se
perde...
Tu voltarás
ao teu barro!
Passarás por
aqui sem cumprir o teu destino
O destino
dado por teu Deus.
E teu Deus
sentirá vergonha de ti
Ele será
contra ti
Porque tu o
abandonaste.
Tu agora me
rompes os caminhos
Entravas
minhas artérias
Cortas
minhas veias
Queimas a
minha pele
Amarelas a
minha cor
Envenenas os
meus peixes
Expulsas os
teus semelhantes
Me humilhas
o quanto podes.
Mas isso não
me findará
Não me
sepultará
Não tirará o
meu último suspiro.
Eu serei a
dor e terei a ferida
Mas nunca
sucumbirei
Ante toda a
existência.
Eu sou
resistência.
Eu serei o
soldado ferido
Mas não o
morto.
Eu serei o
peito baleado
Mas não o
corpo caído no chão
Eu serei o
sangue de Doroty
Mas não
serei a cabeça que tu erguerás como triunfo.
Teus
tratores cortarão o meu corpo em mil pedaços
Mas em
milhões de anos ainda aqui estará minha alma!
Teu
progresso te renderá bilhões em fortuna
Mas a minha
força será como as distâncias entre as galáxias.
Construirás
tuas cidades
Erguerás
tuas pontes
Acenderás
tuas luzes
Dançarás
falsamente com os índios
Passarás o
teu asfalto
Erguerás
tuas torres
E serás a
potência que tu queres ser.
Mas nunca
Nunca!
Absolutamente
nunca!
Conseguirás
arrancar uma gota sequer
Do ser que
sou, fui e serei.
Agora...
Quanto a ti...
Pobre
passageiro
De uma
galáxia,
Ser de
pequenos segundos sobre a Terra,
Criatura
futuramente extinta
Ah!
Ai!
Quanto a ti:
Verei o teu
choro
Verei tua
morte e a de teus filhos
E de todas
as tuas gerações futuras
Verei a tua
fome
Os teus
assassinatos
Os teus
altos preços
A tua cara
farinha!
Verei o teu
sangue sobre a terra
Ainda por um
mísero pedaço de pão
Verei tua
fome te matar aos poucos
Verei até o
improvável: a tua sede.
Verei as
tuas crianças chorarem de dor
De falta de
remédio
De falta de
escola
De falta de
vida
E
testemunharei todos os teus declínios
Verei teus
olhos se fecharem pela última vez
Quando ainda
quererás vida
E vida não
terás mais
E vida nem
vida será!
Eu estarei
amarrado.
Eu estarei
quieto na minha angústia.
Eu chorarei
pelos inocentes: os teus filhos.
Mas não
estenderei as minhas mãos
Para o teu
socorro.
Não chorarei
em vão.
Não estarei
prisioneiro em vão.
E não serei
eu o autor disso tudo
Não serei o
culpado de nada
Pois sabes
que ainda sou criança
Ainda brinco
entre as rochas
De Belo
Monte
Ainda corro
entre as praias
Ainda levo
as canoas
Ainda sou
doce
Ainda sou
inocente.
Tu?
Tu me
amarrarás ainda um bebê
E eu crescerei
nas tuas amarras
E enquanto
eu for preso
Tu serás o
condenado!
Tu viverás
sem sorte...
Errante...
Pobre...
Miserável de
espírito!
E eu levarei
minhas riquezas a outros pontos
Ainda
chegarei ao mar
Ainda verei
as baleias
Ainda
saberei o que é o horizonte.
Enquanto tu...
Só verás o
nada que serás tu mesmo.
E eu serei o
cumpridor da minha existência
Eu serei o
que dará satisfações justas ao nosso Deus
E tu serás a
cobra rastejando no deserto
Do teu
coração.
Serás o nada
de ti.
Enquanto eu
seguirei o meu leito
Seguirei a
minha sorte
E, embora
amarrado,
Embora
acorrentado,
Embora
recolhido,
Embora com
as veias estouradas,
Eu vou
seguir até o mar
Sendo eu
mesmo a minha liberdade
A minha
força
A minha vida
seguindo
sempre...
O meu curso
de rio.
(Mirinaldo, 15 de janeiro de
2013)