terça-feira, 13 de outubro de 2015

O PROFESSOR E O PODER



Dizem que o professor exerce a profissão das profissões. Nunca acreditei nisso. Pelo menos do ponto de vista prático, afinal, isso não passa de uma vã filosofia. Acho que ser professor hoje é um constante sinônimo de luta. E as causas dessa luta não param de crescer. Quando estamos avançando num ponto, perdemos em dois ou três. E as causas vão se somando. Exercemos uma profissão com inimigos claros: os políticos, a mídia e os que seguem a mídia. Às vezes nem nos damos conta, mas também somos inimigos de nós mesmos. E dentro da nossa categoria, há os que são mais oprimidos ainda, inclusive por nós – são eles meia dúzia de sindicalistas. Ou seja, a profissão de professor não tem nada a ver com as belas frases de Alexandre Garcia, porque são anedotas, nem com a própria pátria educadora, porque é uma proposta que não sabemos quem vai executá-la, além do que, a mídia e a direita fascista vêm ofuscando o que é o Brasil de verdade, desfocando nossa rara atenção para o apelo ao golpe. É só nisso que se fala: todo mundo agora tem uma moral que rebate os céus, desde que não seja petista. Ou seja, nunca simplificamos tanto nossa visão já minimalista (agora, sim, eu sei o que é a lei do menor esforço).



A frase “A profissão das profissões” é uma piada para qualquer jogador de futebol, principalmente os que se aposentaram em grandes fortunas e andam por aí pregando que o futuro do Brasil está numa bola (que tem de ser de futebol!) que supostamente sabe filosofar, como também faz rir duplas sertanejas, grupos de pagode, programas de auditório. Quem deles precisa de um professor? No país do futebol, do carnaval e das novelas, quem precisa de um professor? Na política do pão e circo, quem precisa de um professor? Nas propagandas eleitorais cheias de demagogias, quem precisa de um professor? Num país onde letrados votam em analfabetos, quem precisa de um professor?



O professor tem prazo de validade determinado pelas conveniências. Ele é marionete. Quem o move são os interesses e os míseros salários pagos pelo Estado em todas as suas esferas. Ainda estamos submetidos às vontades dos currais eleitorais e somos tal e qual qualquer membro que compõe a massa de manobra eleitoreira. Ainda votamos com a mesma mentalidade de quem vive a morrer de fome material. Aliás, parece que não sentimos outra fome que não seja essa. Nossas ambições são fortuitas e nossos sonhos podem ser qualquer coisa, desde que essa coisa não sejamos nós que a façamos. Não queremos correr nenhum risco, afinal, mantemos nossa vida por um fio em nossos trabalhos (que nem empregos são) somando-nos a milhões de figuras trocadas de cargo a cada quatro anos e rezando cartilhas de opressores para não matarmos nossos filhos de fome, enquanto pregamos uma pedagogia de um homem que mais parece um mago da caverna a quem chamamos Paulo Freire. Aquele que nós matamos numa pretensa filosofia revolucionária que caiu no logro capitalista. E junto com ele, Karl Marx.



Não somos professores a longo prazo. Somos o que vale o momento e, acredite, nunca impomos o valor de momento algum. Nossa missão (digo: obrigação) é cumprir esse momento e torná-lo memorável a um falso herói, nunca a nós. Nós, talvez, ganharemos o nome de uma escola quando morrermos.



Nós ainda somos o fracasso dos que reprovam no final de ano e um fantasma para os que “chegam lá”. Ainda somos alguém que “controla” uma sala porque atribuímos o que um aluno quer: a nota. Sem ela, aqueles famosos temas transversais de PCNs viram apenas matérias como as outras. Nós somos os que ensinam coisas de que muitos duvidam, pois se não está na internet, o professor não sabe. Somos os que gritam que a sociedade deve ser justa e igualitária e que todos devem viver na justiça social, o que serve para se rir quando Neymar tem seus quase 200 milhões bloqueados por sonegação fiscal, mas ainda ostenta o título de melhor jogador, de herói. Então isso basta. Aliás, estamos no país onde o honesto é o menos corrupto. Somos os que ensinam sobre o combate à alienação dedicando pelo menos trinta anos de nossas vidas, porém o que ensinamos sobre isso se torna simplesmente nada depois de trinta segundos da Rede Globo.



Fomos reduzidos a dar aulas.  A não pensar. E pior ainda: a não ensinar a pensar. Estamos confinados em nossos salários. O Estado nos deixou dependentes unicamente da nossa renda. O resto, ele pensa tudo. Ele controla tudo. Nem um grito. Nem uma crítica. Só sala de aula e enfeites das datas festivas. E a viver vomitando-lhe muitos elogios. Aliás, esse será o próximo confinamento do professor: a adoração. Não a Deus, mas a algum deus que poderá nascer de qualquer coisa, de qualquer monte, até mesmo das fezes de gado. Não importa o critério. Não pode haver critério. Critério é sinônimo de crítica. E crítica é insubordinação.



Em cada canto deste país, e mesmo desta menina explorada chamada América, é assim. Ou muito pior. Não importa se numa sala cercada de mato ou numa sala de uma universidade, a dominação chegou a todos.



O professor não morreu (ainda) no país do futebol. Mas está sobrevivendo. Não que eu ache que a imagem desse professor deva suprimir a de um jogador milionário de futebol que parou seus estudos ainda no fundamental, isso seria uma utopia e o Brasil seria irreconhecivelmente melhor. Ocorre que o preço dessa sobrevivência está ficando alto demais e o professor está passando a ter uma imagem deplorável, deformada pelo sistema político. Está como os políticos querem? Sim. Então não presta. O futebol tem mais a adesão dos brasileiros que o ensino? Sim. Então não presta. As novelas são mais apreciáveis que as aulas? Sim. Então não presta. As ideologias da mídia dominam mais que as da educação? Sim. Então não presta. O sistema de fato nos amarrou usando nossas próprias cordas. E de nosso útero docente está saindo uma geração que não cultiva em nós qualquer mudança, nem nela mesma, por isso sai às ruas batendo em panelas, ou temos cantor milionário usando a palavra “porra” para fazer uma revolução chinfrim, gente orando para tirar o governo porque é do demônio e colocar a oposição porque é do céu, que pede democracia e ditatura ao mesmo tempo, ou se não puder, que a presidenta morra. Tudo desconexo para o nosso entendimento, mas absolutamente coerente para quem pensou mais a politicagem do que os professores pensaram a democracia.



Essa mesma geração apostou tudo nos modos automáticos e se poupa de atitudes de reflexão. Quando vê um aglomerado, não importa a causa, vale por ser a reunião de vários, mesmo sem muito ou nada de sentido.



É, ser professor hoje envolve, sim, uma luta, mas também nós precisamos ajustar nossos alvos. E acredite, teremos de apontar para nós mesmos. Há muito o que descobrir no magistério, mas os campos são diversos e difusos e precisaremos começar por entender o que somos em tudo isso. Estudar muito além do que estudamos para repassar em nossas salas é outro meio de entender o sistema. Nunca tomar juízos prontos e ler mais sobre uma ideia pronta é uma maneira de ajuizar. Mas o mais importante ante um quadro de humilhação e subjugo a que são submetidos os professores na teia do poder imbecil é compartilhar. Ninguém será compreendido se não se expressar. As experiências, as frustrações, os anseios, as aspirações e os sonhos precisam ser compartilhados. São as vivências múltiplas que formarão um corpo. Um corpo a que podemos chamar de ação motivadora. E, com todos motivados, como professores cidadãos, será possível armar os primeiros embates. Calma, não se trata de aniquilar sistema algum, mas de alterá-lo, pois o sistema político não deveria existir para oprimir trabalhadores, mas sim para investir em todos, principalmente naqueles que investem nos outros: os professores.

Pois enquanto houver cambadas no poder, o professor será visto como um mero capacho; quando houver políticos no poder, o professor será visto como um agente da cidadania. Mas a mudança não vem das cambadas, e sim do professor.